História da spem



Como acontece em muitas histórias conhecidas, esta não começa pelo princípio…



Texto: Dr. Francisco Mascarenhas Gaivão (Imagiologia) - 1º Presidente eleito da SPEM


De facto, fazer a história da SPEM que me foi solicitada por Colegas que pertencem, como eu próprio, à Sociedade Portuguesa de Ecografia Médica, é-me difícil se não acrescentar memórias mais antigas e muito anteriores à fundação da SPEM. Fundada em Coimbra em 2016 a ideia que presidiu á fundação da SPEM era larvar no espírito de vários Colegas que se serviam e servem do ecodiagnóstico. Alguns dos médicos fundadores eram sobretudo de Coimbra, cidade onde a Ecografia teve desde o início da aplicação da técnica uma grande aceitação por parte da comunidade médica local, sobretudo no meio obstétrico, logo seguido pelas outras especialidades médicas que reconheceram o valor e as possibilidades do ecodiagnóstico.


A necessidade de reunir numa única sociedade científica os Colegas que utilizam na sua prática clínica os ultrassons como ferramenta diagnóstica era transversal a várias especialidades, dada a comunhão de interesses motivada pelas necessidades comuns no âmbito do entendimento da física básica necessária à boa compreensão dos fenómenos ligados ao diagnóstico e à respectiva inocuidade.


Também a reunião de experiências ligadas aos equipamentos de Ecografia e sua adequação às finalidades específicas de cada utilizador, pesaram no espírito dos Colegas que promoveram inicialmente a ideia.


Por outro lado, alguma subalternização injustificada da Ecografia em relação a outras técnicas de diagnóstico pela imagem, mais agressivas ou dispendiosas, motivaram esse grupo inicial à criação da SPEM. Foi desde o início propósito dos Colegas fundadores da SPEM, a inclusão nos corpos gestores da sociedade de médicos de várias especialidades, como vem expresso nos estatutos, de modo e de maneira que a transversalidade dessa gestão seja assegurada no futuro, sempre pela inclusão de quem efectivamente utiliza o ecodiagnóstico.


Nos corpos gerentes iniciais da SPEM, tivemos assim, a participação efectiva de Colegas imagiologistas, gastroenterologistas, cirurgiões, endocrinologistas e ginecologistas/obstetras, estando a sociedade aberta a outras áreas médicas que utilizem ou venham a utilizar o ecodiagnóstico no seu armamentorium profissional.





Voltando então ao princípio…


Foi em 1976 ou 1977 (quarenta anos antes da existência da SPEM…) que pessoalmente me comecei a interessar pela Ultrassonografia, técnica de diagnóstico pela imagem que começava então a ser crescentemente divulgada nas revistas médicas de várias áreas da Medicina. Ainda tenho na minha biblioteca, com valor histórico, as primeiras publicações versando sobre Ecografia, em revista ou livro e que adquiri sobretudo em deslocações feitas a Madrid ou Salamanca. Os “Seminários de Roentgenologia” dirigidos pelo eminente radiologista norte-americano Benjamin Felson, tinham edição em língua castelhana e assim pude ler na edição de dezembro de 1975, a revista com 435 páginas intitulada “Princípios de Sonografia”. Nas edições dessa mesma revista, de setembro e outubro de 1976, dois números dedicados a “Vesicula y Vias Biliares “, da autoria de Barbara Gosnik e George Leopold, dedicavam no volume I, com 298 páginas, apenas oito páginas (3% do conteúdo) ao diagnóstico ecográfico nessa área, em detrimento de outras técnicas de imagem, entretanto desaparecidas. No volume II, sobre o mesmo tema, não havia uma única página sobre Ecografia! Foi ainda em Madrid, que nessa época, numa livraria especializada em temas de medicina, na cidade universitária, encontrei o primeiro livro “a sério” dedicado ao ecodiagnóstico: “Fundamental of Abdominal and Pelvic Ultrasonography”, de Leopold and Asher, editado em 1975 pela Saunders. Revendo hoje a iconografia desse livro com 260 páginas, reconheço que foi necessária alguma coragem para prosseguir o entusiasmo pelas técnicas ecográficas nascentes. As imagens do livro eram quase todas de péssima qualidade, em “preto e branco”, embora o Capítulo 11 do livro se intitulasse pomposamente como “Gray Scale Imaging”.


Em 1973 havia sido editado em França (Masson), o livro “Atlas Clinique de Radiographie Ultrasonore”, da autoria do Prof. Francis Weill, com a chancela do Serviço Central de Radiologia do Hospital Universitário de Besançon, pequena cidade fortificada da região do Jura, mas já na altura um dos mais importantes centros médicos de difusão e ensino do diagnóstico por ultrassons.


Em 1978 foi editado em St. Louis, no estado do Missouri nos USA, pela Mosby Company, e também com a autoria do Prof. Francis Weill o livro “Ultrasonography of Digestive Diseases” que rapidamente se tornou na “bíblia” de todos os médicos radiologistas que procuravam praticar o ecodiagnóstico. Tenho na minha biblioteca um exemplar dessa obra, com dedicatória autografada pelo autor, que muito prezo por essa razão. Algumas outras obras publicadas na época e dedicadas ao tema, foram por exemplo “Abdominal Gray Scale Ultrasonography” de Barry Goldberg (John Wiley and Sons, New York, 1978), o “Atlas of Grey Scale Ultrasonography”, de Kenneth J W Taylor (Churchil Livingstone, New York, 1978) e a série de livros monotemáticos também desta editora, intitulada” Clinics in Diagnostic Ultrasound” que ultrapassaram os vinte temas publicados.


A primeira destas revistas, que eram na realidade, verdadeiros livros de capa dura azulada, foi publicada em 1979 e tinha como tema “Diagnostic Ultrasound in Gastrointestinal Diseases”. As revistas médicas periódicas norte-americanas mais consultadas nessa época eram o “Journal of Medical Ultrasound” e o “Journal of Ultrasound in Medicine”, para além das revistas clássicas “Radiology” e o “Journal of American Roentgenology”, cujos artigos acerca do diagnóstico por Ecografia aumentavam em número e em qualidade a medida que os exemplares mensais iam surgindo.


A literatura médica europeia sobre Ecografia era nessa altura relativamente escassa, pelo menos que fosse do meu conhecimento, não se podendo, no entanto, deixar de salientar a importância de um pequeno livro intitulado “Ultrasonics in Clinical Diagnosis”, do autor inglês P N T Wells, com 189 páginas, muito didático e abrangente, incluindo nos seus dez capítulos a física básica, os métodos utilizados : (A scan, B scan, M Mode etc.), as áreas de aplicação diagnóstica, nomeadamente a obstétrica, a oftalmológica, o sistema hepato-biliar, o aparelho circulatório e o campo urológico. Tratava também dos efeitos biológicos dos ultra-sons na gama de frequências e intensidades utilizadas em ecodiagnóstico e dos mais reputados fabricantes de aparelhagem existentes na França, Suíça, Japão, USA, Suécia, Dinamarca, Holanda e Canadá. Um excelente pequeno livro, publicado em segunda edição em 1977 pela Churchil Livingstone, em Edinburgh.


Inicialmente apenas aplicada convencionalmente a estruturas anatómicas superficiais, mama e abdómen, com a valência obstétrica naturalmente incluída, outras áreas e técnicas foram rapidamente adicionadas ao diagnóstico ecográfico, levando a um incremento considerável das diversas aplicações e a uma substantiva melhoria na capacidade discriminativa dos equipamentos. As técnicas de diagnóstico ecográfico por aplicação intra cavitária e endoscópica foram paulatinamente surgindo, sendo hoje em dia indispensáveis no âmbito da Imagiologia e de especialidades várias como a Cardiologia, a Gastroenterologia, Cirurgia, Urologia, Ginecologia, Proctologia, Pediatria e Neonatologia, e outras.


O surgimento da Ecografia no campo da Imagiologia de intervenção, iniciada entre outros por Holm e Kristensen na Dinamarca (“Ultrasonically Guided Puncture Technique, Munskgaard, Copenhagen,1988) foi igualmente outro passo importante para a acreditação do ecodiagnóstico, dentro da panóplia de meios de esclarecimento diagnóstico ao alcance da Medicina moderna.


A valência do Doppler pulsado e cromático associados ao B-scan, introduzida mais tarde no arsenal dos métodos de diagnóstico por ultrassons, veio acrescentar ainda novas potencialidades à Ecografia, continuando, no entanto, tal como os ultrassons em geral, a serem métodos de diagnóstico subaproveitados pela clínica em geral, devido, principalmente, ao grau de preparação e experiência necessária dos operadores, facto que não estará ao alcance de todos os praticantes do método.


O primeiro evento médico dedicado em Portugal ao Ecodiagnóstico no âmbito da Imagiologia, terá ocorrido, que seja do meu conhecimento, em Lisboa em 1977, designado “Simpósio Internacional de Radioterapia, Medicina Nuclear e Ultrassonografia”, sendo o prelector encarregado do tema do Ecodiagnóstico, o Prof. Fernando Solsona, director à época do Serviço de Radiologia do Hospital “José António de la Seguridad Social”, de Saragoça, Espanha, local onde tive oportunidade de estagiar vários meses no ano de 1978. Aí, além da aprendizagem básica tive a oportunidade de contactar e trabalhar com os primeiros equipamentos de tempo real que viriam a revolucionar por completo as tecnologias até então em uso e que em Portugal, algumas instituições ligadas à medicina e ao ensino, persistiam em adquirir, por desconhecimento e falta de actualização dos decisores.


Em Lisboa, creio que os primeiros médicos a usarem a ecografia terão sido a Dra. Hélia Botas, Ginecologista do Hospital de Santa Maria, e os Drs. Álvaro Malta e Carrelo, estes ligados à área Obstétrica. Na área abdominal, e sobretudo gastroenterológica, o iniciador terá sido o Prof. Carrilho Ribeiro, do Hospital de Santa Maria. No Porto foi o Dr. Carlos Pinto Leite o primeiro a utilizar a Ecografia no âmbito geral da Imagiologia. Em Coimbra, o primeiro utilizador foi o médico obstetra Dr. Humberto Jorge , da Maternidade Bissaya Barreto, logo seguido por médicos oriundos da dos Serviços de Radiologia e de Gastrenterologia dos Hospitais da Universidade de Coimbra que entre outros locais de aprendizagem e treino frequentaram, o já citado Serviço de Radiologia do Hospital de Besançon, dirigido pelo Prof. Francis S Weill.


Em Coimbra, a primeira unidade de ecodiagnóstico dos Hospitais da Universidade, foi criada na Maternidade Daniel de Matos, na época dirigida pelo Professor Doutor Mário Mendes (um dos efectivos criadores do Serviço Nacional de Saúde), embora o médico que instalou e iniciou a prática ecográfica fosse um médico do Serviço de Radiologia dos HUC que ministrou, enquanto chefiava a unidade, ensino prático a colegas de várias especialidades, sobretudo obstetras e radiologistas.


Nos HUC (agora designados como Centro Hospitalar Universitário de Coimbra – CHUC), a credibilidade da ecografia foi rapidamente assumida pela generalidade dos médicos que aí trabalhavam, como o atesta o incremento de 900% no número de exames efectuados entre 1978 e 1987 na unidade de ecografia dependente do Serviço de Radiologia, na altura dirigido pelo Prof. Doutor Vilaça Ramos.


Para além da intrínseca validade diagnóstica, a Ecografia rapidamente se tornou também um valioso instrumento de investigação clínica, colaborando a Unidade de Ecografia do Serviço de Radiologia com vários outros serviços hospitalares. O primeiro trabalho publicado, em colaboração com o serviço de Gastroenterologia (“Peritonite Tuberculosa” – Vasco Esperito Santo, Francisco M Gaivão e outros) apareceu na revista “O Médico”, Vol. 5, nº 1502, no ano de 1980. Na Maternidade Daniel de Matos (Serviço de Obstetrícia dos HUC) tiveram origem vários trabalhos sobretudo sobre diagnóstico pré-natal de malformações fetais : “Atrésia do Jejuno: diagnóstico pré-parto pela Ecografia”- Francisco M Gaivão, Annette Almeida, in “O Médico, Vol. 103,nº 1596, 1982, ou “Ascite Fetal: um diagnóstico ecográfico de prognóstico sombrio” – Francisco M Gaivão, Rui Borralho, in Separata de “O Médico”, Julho de 1983. “O citodiagnóstico por punção aspirativa guiada pela ecografia” – Maximino Correia Leitão, Francisco M Gaivão e outros, teve luz na revista “Coimbra Médica”, 3, Sup 1, 1982 e foi um dos primeiros trabalhos em Portugal dedicados à ecografia de intervenção. O “paper”, “La Hysterosalpingosonographie” – Agostinho A Santos e Francisco M Gaivão- “Gynecologie, 1985,36, 2 Bis, foi um dos primeiros trabalhos a divulgar na Europa, as possibilidades do ecodiagnóstico na determinação da permeabilidade tubar nas mulheres inférteis, utilizando como meio de contrate ultrassónico o soro fisiológico previamente agitado. Desde essas épocas iniciais, o número e a qualidade da investigação associadas á ecografia tiveram um crescimento exponencial que comprovaram a “outrance” as expectativas dos médicos que acreditaram e acreditam no valor deste inócuo e pouco dispendioso meio de diagnóstico pela imagem.


Sucede que a valorização da ecografia como meio de diagnóstico, apesar das limitações de ordem física (gás, tecido ósseo, variação da penetração em função do comprimento de onda) que todos conhecemos, nem sempre é devidamente considerada na panóplia dos meios actuais de diagnóstico por razões, que em parte já foram anteriormente referidas. Terá sido sobretudo a constatação deste facto que determinou, já há vários anos, colegas de várias especialidades a constituírem uma sociedade médica de índole científica que agregasse entre os seus membros médicos das variadas especialidades que usufruem da Ecografia na sua prática clínica, procurando desse modo colocar o ecodiagnóstico no lugar alto que merece dentro do ranking dos meios de diagnóstico pela imagem ao dispor da Medicina moderna.


A constituição da SPEM demorou mais tempo do que os colegas iniciadores desse projecto, previam, mas em dezembro de 2016 foi finalmente constituída a Sociedade, estando plasmados no acto de formalização notarial as assinaturas dos médicos fundadores: Luis Sá (Ginecologista), Idílio Mendonça Gomes (Imagiologista) e Francisco Mascarenhas Gaivão (Imagiologista). Na Assembleia Geral da SPEM, ocorrida em 3 de fevereiro de 2018, procedeu-se à eleição dos primeiros corpos gerentes da sociedade tendo sido eleitos por unanimidade, os membros da única lista apresentada a sufrágio:


Mesa da Assembleia Geral: Presidente, Prof. Doutor Maximino Correia Leitão, (Gastroenterologia), Vice-Presidente Dr. Vitor Carvalheira (Imagiologia), Vogal Dr. Luis Sá (Ginecologia). Membros Suplentes da Mesa da Assembleia Geral: Prof. Doutor Paulo Moura (Obstetrícia) e Dr. Carlos Rabaça (Urologia).


Direcção: Presidente, Dr. Francisco Mascarenhas Gaivão (Imagiologia), Secretário, Dr. Idílio Mendonça Gomes (Imagiologia), Tesoureiro, Dra. Sofia Raposo (Ginecologia), Vogal, Dra. Raquel Martins (Endocrinologia) e Vogal, Dra. Mariana Rei (Ginecologia).


Conselho Fiscal: Dr. Vitor Pardal (Imagiologia), Vogal Prof. Doutor Rogério Teixeira (Cardiologia) e Vogal Dr. Daniel Brito (Gastroenterologia). Membros suplentes do Conselho Fiscal: Dr. Jorge Reis (Imagiologia) e Dra. Gisela Carvalho (Ginecologia).


Também para esta breve história da SPEM, cumpre agradecer a algumas entidades que ajudaram a concretizar este projecto, nomeadamente o IPO de Coimbra que cedeu o espaço físico para as numerosas reuniões preparatórias da fundação da Sociedade e à empresa Sonomedicus – Centro de Diagnóstico Médico, Lda. que a título gratuito vem cedendo uma sala para as reuniões da Direcção da SPEM e espaço para as reuniões de Assembleias Gerais da sociedade. À Ordem dos Médicos, ao conceder o seu patrocínio ao primeiro evento científico organizado pela SPEM (junho de 2019), agradece-se essa prova de confiança que confere credibilidade ao evento e por acréscimo à própria Sociedade Portuguesa de Ecografia Médica.